Jorge Lettry: Um Ítalo-Brasileiro e um homem acima de dois tempos

Jorge Lettry: Um Ítalo-Brasileiro e um homem acima de dois tempos

O termo gasolina nas veias para “homenagear” quem gosta e entende de carros é muito usual, mas na década de 50 era comum homens competentes e apreciadores da bela mecânica dizer que os italianos tinham graxa nas mãos. Era um elogio feito por franceses, espanhóis e alemães. Muita gente da península ama a “Macchina” e o pequeno país é muito conhecido por marcas que encantam há muito os quatro cantos do mundo. Na Itália as provas de Mille Miglia e Targa Florio revelaram carros e pilotos de talento e também o mesmo pode-se dizer de templos como Monza. Também não faltam homens que nasceram lá, mas fizeram história aqui no Brasil. Um deles foi Jorge Lettry, nascido em Ivrea, na região piemontesa, norte da Itália. Chegou ao Brasil com menos de um ano de idade no principio da década de 30 com os pais e irmãos.

Como a maioria dos italianos que aqui chegavam em busca de uma nova vida se estabeleceram no Estado de São Paulo, na cidade onde desembarcaram Santos.

Em 1947 Jorge perdia o pai e a família se mudava para a capital do estado, primeiro no bairro Penha e depois em Santo Amaro na região centro sul da capital paulista. Curiosamente uma das avenidas mais importantes da época era a Avenida marginal Pinheiros que seria por anos a principal via de acesso ao Autódromo de Interlagos inaugurado em maio de 1940. 

Aos 18 anos de idade optava por nacionalidade brasileira e pouco depois conseguiu emprego em concessionária Volkswagen que na época importavam o Tipo 11, antecessor do nosso querido Fusca. Para se aperfeiçoar em mecânica fez um curso técnico na concessionária Brasmotor, na região do Bairro Brás e em 1950 esta empresa já era a importadora e distribuidora exclusiva para vender tanto a Kombi quanto o Fusca. Estavam em São Bernardo do Campo.

Já neste principio da década de 50 era conhecido e frequentador do meio automobilístico paulistano. Adorava e passava horas trabalhando em carros e fora deles, conversava muito e trocava ideia. Era um apreciador da marca Porsche e de carros alemães apesar da origem italiana.

Em 1953 abria com o amigo Eugênio Martins a empresa Argos Equipamentos na Rua Butantã, Bairro de Pinheiros. Gostavam e entendiam dos motores arrefecidos a ar e eram referencia na cidade em dar mais músculos aos tímidos Volkswagen e aos rápidos Porsche. Um de seus clientes e amigos era Christian Heins que possuía uma modelo 356 da marca alemã e o deixava sempre aos cuidados de Lettry. Desde cedo se mostrou muito organizado, sério e disciplinado. Havia até algo militar, pois ainda se vestia de forma discreta e formal. Os mais chegados o chamavam de tenente. Lettry não achava muita graça.

Em novembro de 1956 Christian Heins e Eugênio Martins disputaram a primeira edição das Mil Milhas de Interlagos e chegou em segundo lugar com um VW que tinha um motor Porsche de quatro cilindros debaixo do capô. Tinha 1.500 cm³ e 74 cavalos de potência e a preparação foi feita por Lettry. Tinha cárter seco e por isso o reservatório de óleo necessitava de um radiador que era o destaque na frente Fusca. O capô especial em fibra de vidro foi fabricado por ninguém menos que João Augusto do Amaral Gurgel, era visível. Contava ainda com uma barra estabilizadora mais grossa que lhe permitia enfrentar curvas com muito mais atitude. O pequenino com para-lamas recortados, número 18 e ares bem atrevidos enfrentou muito bem os gaúchos especialistas em carreteras, carros com motor e carroceria modificada de origem norte americana bem mais potentes, com mecânica de oito cilindros em “V” que chegavam a 250 cavalos. Deu trabalho aos sulistas.

Os Fuscas continuaram a ganhar cavalos nas mãos de Lettry. Em 1957, Mario César de Camargo Filho, conhecido como Marinho, ganhou pela primeira vez uma prova de subida de montanha, na antiga estrada de Santos, com um Fusca 1200 “envenenado” por Lettry. Este outro homem que também faria parte da história do automobilismo nacional também se tornou grande amigo de Lettry. Ambos fariam ainda muitas “artes” no asfalto nacional.

Nesta época a indústria brasileira de automóveis engatinhava e poucos modelos aqui eram produzidos. Um deles era o DKW Vemag que estreou nas ruas em 1956 e em 1959 já contava com o sedã de quatro portas e o jipe Candango com o qual Lettry fez piada dizendo que era um bom carro esporte. Jorge se apaixonou pelo motor de dois tempos e começou a estudá-lo a fundo, testa-lo e modifica-lo. Estavam nascendo os primeiros DKW de competição que enfrentavam carros maiores com galhardia e também o preconceito, pois tinham tração dianteira.

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A Vemag S/A Veículos e Máquinas Agrícolas tinha na pessoa de Ângelo  Gonçalves um engenheiro capacitado e com novas ideias. Convidou Lettry para trabalhar e eles criaram um serviço especial de testes que seria o Departamento de Competições da Vemag.

Lettry fazia novas peças junto com o engenheiro alemão da DKW Brasil Otto Kuttner e testava em pistas, viagens e também em carros da marca com amigos especiais que pilotavam muito bem como Cyro Caíres.

O objetivo era melhorar o carro. Torna-lo mais resistente para as pistas, mas também para as ruas.  Trabalhavam e sujavam as mãos em pistões, anéis, bronzinas, engrenagens da caixa de marchas, freios a disco e ponteiras de eixo.

No final da década, em 1959, três DKW iriam disputar as Mil Milhas em Interlagos. A preparação dos carros brancos, apenas com os números pintados ficou por conta de Jorge Lettry. E os dois tempos fizeram bonito com o terceiro, quarto e nono lugar. Os pilotos Caio Marcondes Ferreira e Lauro Bezerra completaram 196 voltas apenas três do vencedor com uma Carretera Ford. Na quarta posição ficou os irmãos Karl Iwers e Henrique Iwers e em nono. Ainda com o DKW estavam Edward Almeida Pacheco e Paschoal Nastromagario em décimo terceiro e Paulo Marinho e João Reguera em décimo nono. 

Chegava a década de 60 e em 1961 Jorge Lettry era enviado a Auto Union na Alemanha para fazer um estágio. Neste ano o Departamento de competições da empresa no Brasil era comandado por Otto Kuttner e Miguel Crispim, este último, outro grande companheiro de Jorge. A equipe de pilotos era formada dois nomes muito afamados na época. Eram o paranaense César Camargo Marinho e paulistano Bird Clemente.

Felizmente naquela época havia homens apaixonados por carros, mas desinteressados no que se refere a política. Lettry ajuda a estabelecer regras e regulamentos para as corridas nacionais. Apesar da imensidão de nosso país, as principais competições se restringiam a Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Jorge Lettry inseriu no regulamento das Mil Milhas a categoria Força Livre para Carreteras.

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Preparou então um DKW com teto rebaixado que deixou melhor a fluidez da carroceria, ficou um pouco mais leve e no motor aumentou o deslocamento volumétrico para 1.089 cm³ ante os 981 cm³ do motor de três cilindros em linha. O motor rendia cerca de 106 cavalos deixando os engenheiros da Auto Union na Alemanha orgulhoso com o talento dos brasileiros. Tal como Amedée Gordini ou Carlo Abarth, Lettry também era considerado um “bruxo” da mecânica. Neste propulsor foram alterados diversos componentes como cabeçote, comando, ignição e carburação.

Por causa de uma corrida no Uruguai e observando um Panhard Dyna de origem francesa, o Vemag recebeu mais modificações na carroceria. Teve seu entre-eixos reduzido a 2,10 contra os 2,45 originais e apenas duas portas.

Este “cupê”, que ganhou o carinhoso apelido de o Mickey Mouse, tinha algumas peças em plástico reforçado com fibra de vidro e teve a honra de ser pilotado pelo pentacampeão Juan Manuel Fangio.

Em 1963, em terras uruguaias, Bird Clemente ganhava às Três horas de Rivera com um DKW fato que foi festejado pela fábrica. Também neste ano, nas doze horas de Interlagos, na categoria até 1.300 cm³, o primeiro lugar ficava com o trio Clemente, Marinho e Flávio Del Mese e terceiro na geral em concorrência desleal contra carros mais potentes e com muitos componentes importados.

Por este motivo já passava na cabeça de Lettry desenvolver um esportivo com mecânica DKW, leve e com perfil aerodinâmico. Em conversas e entendimentos com Marinho e Milton Masteguim, da Comercial MM, uma concessionária DKW-Vemag fizeram contato com outro ítalo-brasileiro, o desenhista e projetista Rino Malzoni que morava no interior do estado de São Paulo, na cidade de Matão. Pouco tempo depois, o protótipo com estrutura de arame já rodava em testes nas redondezas da Fazenda Chimbó de Malzoni. Juntos, os quatro homens criarão a Lumimari Ltda. Malzoni já havia feito um belo carro de três volumes e desenho esportivo com mecânica e chassi DKW.

Em 1965 nascia o GT Malzoni, um lindo cupê que, apesar da competência de Rino, recebeu vários palpites importantes de Lettry na construção da estrutura e do chassi. Impressionou pela beleza no Salão do São Paulo.

Neste mesmo ano Jorge iria realizar outro sonho: – Fazer um protótipo brasileiro bater o recorde de velocidade nacional. Era o Carcará que foi pilotado por Norman Casari e a mistura de talentos na construção deu bons resultados. Após quase um ano de trabalho o “stream line” foi desenhado por Anísio Campos, construído por Malzoni que usou chapas de alumínio sobre o chassi de uma fórmula júnior fabricado em 1962 por Toni Bianco. Era um verdadeiro trabalho Ítalo-brasileiro. Na estrada Rio Santos em junho de 1966 oficializa ou junto a Confederação Brasileira de Automobilismo a marca de 212,903 km/h

Quanto ao GT Malzoni nas competições as carrocerias eram preparadas por Jorge Lettry e seu fiel amigo e mecânico Crispim Ladeira que tinha vasta e competente experiência. Este esportivo iria enfrentar nas pistas nacionais o Willys Interlagos e o Simca Abarth francês. Um modelo, denominado Malzoni II, com carroceria em chapa, estreou nas 100 Milhas da Guanabara. E nas 1000 Milhas em 1966 no Autódromo de Interlagos fez bonito com o segundo lugar de Mário César de Camargo Filho e Eduardo Scuracchio, terceiro de Jan Balder e Emerson Fittipaldi e quarto de Norman Casari e Carlos Erimá. 

Em 1967 eram encerrada as atividades da DKW no Brasil e Lettry já estava se dedicando totalmente ao Puma GT com mecânica traseira Volkswagen a ar. O carro de muito sucesso nacional que foi exportado para vários países.

Em 1973 Lettry deixava a Puma e ia trabalhar na Brosol, empresa responsável no Brasil por fabricar carburadores Solex e outras peças como bombas de gasolina e óleo para vários carros nacionais. Ainda este ano casava-se aos 43 anos e trabalhou em várias empresas como a Engesa (Engenheiros Especializados S.A.) que era especialista em veículos militares e civis especiais, na CEBEM que vendia os BMW no Brasil e na Dacunha que produziu o simpático jipe Jeg.

Em 1978 escolheu por diversos motivos mudar de especialidade e de estado. Foi para a bela Monte Verde em Minas Gerais junto com a esposa e as duas filhas e montou uma bem sucedida fábrica de chocolates.

Em 16 maio de 2008, Jorge Lettry, com 78 anos de idade, faleceu vítima de um câncer. Foi homenageado em dois importantíssimos encontros de automóveis antigos no ano passado. Em 22 de maio, quinta-feira, em Araxá, Minas Gerais no ano de 2010, o GT Malzoni impecável de cor branca n.º 10 estava lá e foi destaque no Brazil Classics Fiat Show.

E no final do ano, no VI Encontro Blue Cloud, DKW e seus descendentes, realizado entre os dias 6 e 9 de novembro de 2008 Houve também uma bela homenagem ao chefe do departamento de competições da Vemag. Participaram desta homenagem pilotos da época de ouro do automobilismo nacional. Eram Jan Balder (acima numa palestra em Curvelo, Minas Gerais) Bob Sharp, Mario César de Camargo Filho e Bird Clemente (ambos abaixo) e o mecânico-chefe da equipe Vemag dos anos 60 Miguel Crispim.

A homenagem e premiação na noite mais glamourosa em Araxá. Foi em maio de 2008. 

Foi um exemplo para a indústria e para o automobilismo nacional e sempre será lembrado quando um motor de dois tempos fizer pipocar um coração.                


                         

Texto, fotos e montagem:  Francis Castaings – Foto com Bob Sharp e Lettry no início do artigo cedida gentilmente pelo piloto Bob Sharp

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