Peugeot 404: Robustez Felina

Peugeot 404: Robustez Felina

A palavra de ordem para as indústrias automobilísticas europeias após a Segunda Guerra Mundial, era reerguer. Tinham que reagir e tornar a produzir automóveis. Tinham que gerar emprego e prover a população de veículos confiáveis. Retomar o crescimento. O período foi árduo para a população de toda a Europa.

Entre 1937 antes do conflito, até o final em 1945, os costumes e a vida de todos os cidadãos do velho continente foram alterados.  A escassez começava. Todas as indústrias, inclusive francesas, que trabalhavam na fabricação de automóveis, produziram armamentos de diversos tipos. De um simples obus até tanques e componentes aeronáuticos.

Em 1943 a fabrica da Peugeot foi ocupada e depois bombardeada. Após o conflito seus automóveis eram antiquados. Simples continuações do que se produzia antes. A Peugeot que, junto com a Renault, a Citroën e outros menores, dedicaram suas linhas de montagem a produtos completamente estranhos a suas origens. E logicamente contra a vontade delas.

Após o conflito, em 1948, foi lançado o Peugeot 203 (abaixo)  que era um projeto anterior ao da guerra. Em 1952 a Peugeot já tinha produzido seu primeiro milhão de carros. Três anos depois era a vez de entrar em cena o sedã 403 mais moderno e maior que o irmão.

Já no final da década de 50, o grupo Peugeot Automobiles S.A. estava com modelos antiquados. Mas estes voltaram a impulsionar a empresa de Sochaux. O 403 (abaixo) , desenhado por Pininfarina, iniciava uma grande parceria. Fazia sucesso, mas já apresentava os sinais do tempo.

Os primeiros protótipos de um novo modelo começaram a rodar em 1957. E os estudos começaram imediatamente após o lançamento do sedã 403. Foram mais de dois milhões de quilômetros rodados sobre os mais diversos revestimentos em toda a Europa e principalmente na França, em Valentigney, cidade que fica muito próxima a Sochaux, cerca de seis quilômetros. O objetivo era a robustez a toda prova. Outro era a qualidade de fabricação.

Em abril de 1960, dando inicio a uma década marcante, chegava ao mercado francês, o novo Peugeot 404. Havia semelhança de linhas com o Lancia Flaminia de 1955, com o Austin Cambridge de 1960 e o Fiat 1800/2100. Um ar de família Pininfarina.

O automóvel de linhas convencionais tinha carroceria monobloco, quatro portas, três volumes. Com estilo equilibrado a sua traseira tinha um discreto rabo-de-peixe. Era uma tendência quase mundial como mandava a moda das carrocerias na época.

Visto de frente havia uma grade retangular, com o escudo do Leão, símbolo da empresa, ao centro. Tinha discretos frisos horizontais. E, para completar, o grupo óptico era formado por dois faróis circulares. Abaixo destes as luzes direcionais tinham desenho retangular. Este automóvel familiar que tinha capacidade para cinco passageiros. Seu coeficiente aerodinâmico era de 0,42. Número razoável para um sedã comum. E sua visibilidade era muito boa.

O desenho deste, conforme os franceses diziam na época, misturava o design italiano e americano. Media 4,45 metros de comprimento, 162 de largura, 1,45 de altura e entre-eixos de 2,65 metros. Pesava 1.080 quilos. Apesar da falta total de esportividade tinha denominação Grã Turismo. Era muito simples na parte externa tanto que as rodas tinham a mesma cor da carroceria.

No mesmo ano, em dezembro, era apresentada a versão Super Luxo que trazia rodas com calotas e sobre aros, antena de radio no teto, bancos em couro, apoia braço central, teto solar e contorno cromado dos faróis e das molduras dos vidros. O aspecto geral melhorava consideravelmente.

Era um carro bonito, mas também muito robusto como era e é tradição da marca. O mercado americano era visado e um acordo de exportação de produtos Peugeot já havia sido homologado em 1958. Logo foi exportado e a propaganda nos Estados Unidos o mostrava ao lado de um ferro velho e era intitulada: – Chame-me de Indestrutível!

O motor, dianteiro, refrigerado a água, tinha quatro cilindros. Estava em posição longitudinal, inclinado a 45º, com 1.618 cm³ de cilindrada e potência de 72 cavalos a 5.400 rpm. O bloco era em ferro fundido e o cabeçote em alumínio com câmaras hemisféricas. O virabrequim tinha três mancais, sua taxa de compressão era de 7,6:1 e o torque máximo era de 13,5 mkgf a 2.250 rpm. Era alimentado por um carburador Solex em posição invertida. As válvulas eram no cabeçote e o comando lateral. Em caso de manutenção, o acesso era bom. Este conjunto levava o sedã a 145 km/h de velocidade máxima que era razoável para categoria na época. Tinha cambio de quatro marchas sincronizadas com alavanca na coluna de direção e sua tração era traseira. 

Em sua categoria, na França, concorria com o Citroën ID19, a linha Simca Chambord/Vedette e a Renault Frégate em final de produção. 

Em 1961, no Salão de Genebra, na Suíça, era apresentada a versão equipada com injeção mecânica Kugelfischer. Seria o primeiro carro francês de produção em série a ter este tipo de alimentação. Sua potência passava a ser de 88 cavalos a 5.600 rpm, a taxa de compressão subia para 8,8:1 e o torque máximo era de 14,4 mkgf. A velocidade máxima era de 160 km/h o que o tornaria bem mais atraente. Era uma opção a mais já que as equipadas com carburador continuavam a ser oferecidas. E uma ameaça ao desempenho do DS nas auto-estradas que começavam a ser construídas na França.

Por dentro era elegante. O volante tinha dois raios e aro de buzina cromado. O painel horizontal, exibindo também muitos cromados, era amplo e abrigava velocímetro com graduação até 180 km/h e pequenos mostradores retangulares indicando volume do tanque de combustível e temperatura da água. Tinha ainda vários botões de controles e luzes espia. Ao lado acomodava rádio, desembaçador, cinzeiro e porta-luvas. Destaque para a enorme alavanca de freio de mão que saía debaixo do painel à esquerda. 

Os bancos dianteiros, na versão SL, se reclinavam e com os encostos quase na horizontal, ficavam juntos com os assentos traseiros e viravam duas camas razoáveis.  Naqueles tempos, dormir na beira de estradas nos acostamentos ou nos estacionamentos de postos, chamados lá de “Estação de Serviço”, era comum e seguro dormir, quando a viagem era muito longa. Tinha bolsas laterais para guardar pequenos objetos que eram bastante úteis. 

Em 1961 a gama ficava mais ampla. Era apresentado um belo conversível de duas portas em 1961. Muita gente não sabe mas os conversíveis, há anos, são muito apreciados na Europa apesar do clima frio na maior parte do ano. Sempre fizeram sucesso e ainda fazem.

A carroceria deste era quatro centímetros maior, medindo 4,49 metros de comprimento, 1,68 de largura e 1,38 de altura. A traseira tinha uma leve queda que demonstrava esportividade. Suas linhas eram mais curvas, mas mantinha a identidade com o sedã. Porém não tinha nenhuma peça de carroceria em comum com este. Mais uma comparação com outra obra de Pininfarina era feita. A frente do conversível e a traseira eram realmente muito semelhantes a da Ferrari 250 GT 2 + 2 de 1958.

Na frente, para os ocupantes, em termos de conforto apresentava alguma diferença já que era mais largo que o sedã. E por causa da alavanca de cambio na coluna, o espaço nos bancos dianteiros eram bem maiores se comparados com esportivos de sua classe. Mas atrás era mais limitado. Porém os bancos em couro assim como a cobertura do painel davam destaque.

O motor era o mesmo da versão básica, um pouco mais potente com 72 cavalos o que lhe permitia chegar aos 153 km/h. Com o motor a injeção chegava a bons 167 km/h e sua aceleração de 0 a 100 km/h era feita em 13 segundos. Por fora novas calotas com raios para destacar a esportividade e capota de lona. Havia também como opção a capota rígida.

Neste, o painel era rico de instrumentos da marca Jaeger. Nas extremidades havia o conta-giros à esquerda e o velocímetro à direita graduado até 200 km/h. Entre eles mais quatro mostradores. Faziam parte o voltímetro, temperatura de água, nível de tanque e pressão do óleo. A suspensão tinha o mesmo esquema que o sedã. Na frente tinha rodas independentes, sistema McPherson, molas helicoidais e amortecedores hidráulicos. Atrás tinha eixo rígido e sua distância entre eixos era de 2,65 metros. Usava pneus 165 x 380.

Um ano depois chegava o modelo cupê, de linhas muito elegantes baseadas no irmão conversível e também vindas das mãos do famoso “carroziere” italiano. Com pintura metálica e versão de acabamento Super Luxo tornava-se uma opção muito interessante

E em outubro, chegava uma versão que faltava a linha 404. Era lançada a perua de quatro portas. Com ampla área envidraçada, media 4,58 metros de comprimento com entre-eixos de 2,84 metros. Por conta destas medidas, alguns críticos diziam que era mais estável que a dupla de esportivos. Principalmente em piso molhado.

Suas linhas não eram um primor, mas extremamente prática e o sucesso veio imediatamente. Agradava a famílias numerosas já que havia a opção do terceiro banco. Também a produtores rurais, taxista, principalmente na versão Diesel, aos hospitais como ambulâncias e a polícia. Estavam disponíveis as versões Familiar, mais luxuosa e bem acabada, e a Comercial mais rústica. Espaço para bagagem tinha de sobra. A suspensão era mais robusta e atrás recebia uma barra estabilizadora.

Sua única concorrente na França era a Citroën ID Break já que a Simca Marly, que veio para o Brasil como Jangada, não era mais fabricada.

Uma opção de motor que foi muito requisitada, principalmente por frotistas e taxistas era a movida a óleo diesel. Tinha 1.816 cm³ e 55 cavalos a 4.000 rpm. A taxa de compressão era de 21:1 e o torque máximo de 11 mkg a 2.250 rpm. Era alimentado por uma bomba de injeção da marca Silto. A velocidade máxima era de 130 km/h, mas o consumo de urbano de 12,5 km/l era muito atraente.

Em 1964 a versão Super Luxo do sedã contava com freios com sistema hidro-vácuo. Logo depois o motor com carburador passava a ter 70 cavalos e o com injeção 88 cavalos. Em ambos o virabrequim passava a ter cinco mancais. A velocidade máxima passava a ser de 165 km/h. Dois anos depois havia mais uma opção de cambio. O  automático ZF (Zahnrad Fabrik) que iria agradar muito o mercado americano.

Em 1966, com 200.000 exemplares vendidos, o 404 atingia o segundo lugar em vendas na França ficando atrás somente do Renault 4 L, carro este de outra categoria. 

Em 1967 a empresa de Sochaux oferecia dois anos de garantia ou 50.000 milhas tal era a robustez de seus carros. Neste ano também a fabrica acabava de produzir seu quarto milionésimo automóvel. Os concorrentes do 404 Super Luxo fora da França eram os italianos Alfa Romeo Giulia Super, o Fiat 2300 Lusso, o Lancia Fulvia 1, 5, os ingleses Austin 1800, o Morris Oxford VI, o Ford Zephyr, os alemães Audi 1700, o BMW 1600, o Ford Taunus 20 M TS, o Opel Rekord e o sueco Volvo 121.

O conversível e o belo cupê que eram produzidos em Grugliasco, cidade sede da Pininfarina perto de Turim, enfrentavam os ingleses MG B, o Austin-Healey Sprite Mark II O Sunbeam Alpine Mk V, o Triumph TR4, os italianos Alfa Romeo Giulia Sprint GT, o Fiat 1600 S Conversível, o Lancia Flavia Conversível 1,8 e o alemão Glas 1700 TS.  

Também neste ano ganhava novo painel, com desenho bem mais moderno, tendo a parte superior preta ou marrom conforme as cores dos bancos. Nele havia novos mostradores circulares (velocímetro, conta-giros e relógio de horas) que ficavam bem a frente ao motorista e o porta-luvas ganhava uma tampa. Os esportivos passavam finalmente a ter a alavanca de marchas no assoalho. Nestes a grade dianteira ganhava novo desenho incorporando faróis auxiliares retangulares. E todos da linha ganhavam freios a disco de série na parte dianteira.  

Um ano depois, apesar das mudanças terem pouco efeito, o cupê e o conversível saiam de produção.

Em 1968 eram lançados a camionete cabine simples e dupla sendo que esta última era só para o mercado externo, principalmente africano. Foram muito utilizadas, durante anos, nas minas de ferro subterrâneas na Laponia, Suécia. Quanto ao modelo perua, serve até hoje a polícia do Nepal e do Mali. O modelo 404 estava praticamente em todas as regiões do mundo enfrentando todo tipo de clima

Em 1969 era lançado o modelo 504 (Abaixo). Era seu substituto sendo muito mais moderno em todos os aspectos. Mas o bravo 404 conseguiu coabitar ainda por muitos anos com seu irmão mais novo.

Em 1975 deixava de ser fabricado na França, após 1.910.525 unidades em 23 versões diferentes e quatro tipos de carroceria. E dois anos depois a versão Export, produzida especialmente para a Argentina a para a África do Sul encerraram a produção.


No resto do mundo

Mas fabricação continuou na Argentina, na filial da Peugeot denominada SAFRAR, até 1981 e depois na África. Foram produzidos 2,3 milhões de unidades do modelo 404. Também foi produzido na Irlanda, no Canadá, na Nigéria, no Zimbabué, na África do Sul, na Austrália e na Nova Zelândia.

Na Argentina foi muito apreciado principalmente por taxistas pela sua robustez e eficiência. Até hoje ele é saudado. Sua fabricação começou em 1962 e em 1964 ganhou uma versão mais potente que a francesa denominada 404 S. Teve a admissão, pistões e cabeçote trabalhados. Uma nova bomba de óleo mais potente e dois carburadores Weber 40. Elevou a potência a ótimos 115 cavalos a 6.500 rpm e sua velocidade final chegava a 185 km/h. Mas foi uma versão especial que durou pouco. 

É cultuado por inúmeros clubes espalhados na Europa onde se fazem grandes encontros. Foi um ícone da indústria francesa, revolucionou a marca levando-a  modernização. Um sucesso em todos os continentes.


Nas Pistas

Na Europa os ralis regionais são de grande importância. Em vários países os campeonatos entre marcas são muito acirrados. Foi aí que o 404 começou. Os terríveis ralis africanos começaram a ser enfrentados pelo 404 em 1961. Ficaram em terceiro e quarto lugar no East African Safári no Quênia.

Em 1963 iria tentar uma nova empreitada: – Enfrentar as marcas alemãs nos ralis africanos! Estas estavam ganhando as provas severas do continente, e aos poucos o mercado também. Nas mãos de Novicky e Cliff chegava ao lugar mais alto do pódio no East African Safári. Na partida eram 91 carros. Somente 49 terminaram.  

No ano seguinte repetia a proeza nas 100 Milhas de Tanganica, oriente da África, e no Rali de Uganda. A fama da Peugeot em terras africanas, nas competições estava apenas começando e faria sucesso por anos graças ao pioneirismo e a robustez do Quatre Cents Quatre.

Em 1965, o piloto Ernesto Santamarina ganhou o Rali da Argentina. Este teve um percurso de 4.237 quilômetros e boa parte feita nas alturas da Cordilheira dos Andes. Uma conquista sul americana muito importante para a marca. 

Em 1966 e 67, Bert Shankland, que já havia ganhado em Tanganica em 1964, tornava a faturar o terrível rali do Quênia. Ao contrário de hoje, eram carros bem próximos aos de produção em série. Chegavam ao fim bem surrados, mas inteiros.

Inusitada foi a participação de uma picape 404 em 1979 no famoso rali Paris-Dakar. Como o piloto francês Marc André e o co-piloto Philippe Puyfoulhoux eram muito amigos do organizador Thierry Sabine, esse pediu a dupla que fossem para a praia de Dakar avisar que os pilotos finalistas estavam chegando. Porém a multidão os aclamou como campeões. Mas na verdade, neste rali que teve a participação de 200 concorrentes, a dupla chegou numa honrosa septuagésima terceira posição.

Também participou da dura prova Londres-Cidade do México em 1970. A largada se deu no famoso estádio de Wembley em 19 de abri. Após 25.750 quilômetros parte dos concorrentes chegaram na cidade do México em 27 de maio. Rodaram pela Europa, América do Sul e América Central. Enfrentaram a dura prova os mais diversos tipos de carros. Desde modestos fusquinhas até sofisticados Rolls-Royce. Marcas como BMW, Datsun, Mercedes-Benz, Moskvitch, Austin, Citroën e Peugeot tiveram participação importante.

Nesta corrida maluca vencida por um Ford Escort 1850 GT pilotado por Hannu Mikkola, um Peugeot 404 chegou em décimo nono lugar. De uma centena de inscritos só 23 chegaram a capital do México.


Recordes                                                                 

Em 1965 ele obteve grande destaque: Um protótipo Peugeot 404 Diesel batia 40 recordes mundiais na categoria diesel. Percorreu 16.627 quilômetros em 103 horas a uma média de 161,49 km/h. Foi conduzido por cinco pilotos que se revezavam dia e noite. Três eram pilotos de testes da casa. Outros dois profissionais.

Era equipado com um motor da marca Indénor, de 2.163 cm³, que era um antigo parceiro da marca, desde os tempos do modelo 203 e se tornara associado neste mesmo ano. Outro motor, de 1.948 cm³ também foi montado visando outros recordes de categoria.

Sua carroceria era baseada no modelo conversível. Partes dela eram em alumínio. Sua meia capota, mais parecida com uma carlinga, tinha desenho aerodinâmico e era protegida por um tubo anti-capotagem. Pintado na cor azul, tinha um grande número 404 nas laterais e filetes amarelos indicando o combustível de cor semelhante. No alto dos para-lamas traseiros, dando continuidade ao filete, estava a indicação que era movido a óleo diesel.

A frente também era perfilada e tinha quatro faróis circulares de boa potência, sendo dois de longo alcance. Tudo que era supérfluo foi retirado do carro. No mais respeitava a originalidade. Um curioso artefato foi montado na direção. Conforme a inclinação da pista, o acelerador se inclinava dando mais conforto muscular ao piloto. O engenho espiral foi chamado de caracol, ou como no idioma local “Escargot”.

Este feito se deu no antigo e famoso autódromo de Monthléry, que dista 21 quilômetros de Paris, onde tem pistas inclinadas como em Monza na Itália.


Texto, fotos e montagem Francis Castaings. Fotos sem a marca Retroauto são de divulagação                            

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